❝ one day she will discover that not even she can hold herself back because her passions burn brighter than her fears !
@khdpontos
a diversão que iluminava o rosto de olivia despertava uma resposta inevitável e semelhante em neslihan. as lembranças que fervilhavam entre elas pareciam quase instintivas , um desfile de memórias afetivas que reavivavam a familiaridade construída entre infância e adolescência. a gökçe sequer se atreveu a retrucar sobre a pontualidade , a ideia de fazer os outros esperarem por si a fazia estremecer. um sorriso , amplo e sincero , desenhado até as extremidades do rosto , e um riso, carregado de puro deleite , transbordaram antes que ela desse de ombros com leveza. ❝ eu ? elaborar planos mirabolantes ? jamais ! apenas arquitetando futuros improváveis que sei que sou plenamente capaz de poder transformar em realidade ! ❞ exclamou com teatralidade , enquanto estalava a língua em uma falsa reprimenda , as íris cintilando com uma energia que mal conseguia conter. ❝ quem disse que meu verdadeiro objetivo não é apenas aproveitar da sua legião de adoradores e transformá-los nos meus novos voluntários ? ❞ com um gesto casual , retirou o blazer e o sobretudo , entregando-os a carina junto da bolsa , antes de enlaçar o braço ao da mais nova com naturalidade. o sorriso , se é que era possível , tornou-se ainda mais radiante enquanto se aproximava. ❝ como se alguém fosse acreditar. ❞ uma risada curta escapou , piscando com uma expressão de inocência calculada. ❝ é claro que é mais uma adoção fortemente encorajada por mim. mas me diga , não foi a melhor decisão que tomou recentemente ? ou estou errada em estar completamente certa ? ❞ mordiscando levemente o lábio inferior , como se tentasse conter a euforia crescente , indicou com um gesto as portas que separavam os animais e a clínica dos escritórios e da recepção.
Sentada à mesa, pernas cruzadas com a elegância ensaiada que parecia inata, mas que era, na verdade, fruto de anos de treinamento e expectativa alheia. Os óculos escuros protegiam mais do que apenas seus olhos da claridade do dia; eram um escudo contra a inquietação que ameaçava transparecer. Neslihan estava atrasada, o que era totalmente incomum para a tão organizada advogada, e Olivia quase chegou a se preocupar. Quando seu olhar finalmente captou a figura familiar, ergueu uma sobrancelha, um meio sorriso brincando em seus lábios. A mulher estava visivelmente apressada, quase atrapalhada em seus saltos altos que nunca foram feitos para a correria. Parecia tão diferente da garota que Olivia conheceu na infância, mas ao mesmo tempo exatamente igual. Havia algo reconfortante em ver como algumas coisas nunca mudavam, o pensamento arrancou um sorriso nostálgico da musa. Quando a outra entrou, falando rápido e gesticulando como se estivesse tentando justificar um crime terrível, Olivia inclinou a cabeça levemente, tirando os óculos com uma precisão calculada. “ Relaxa, Nes. Eu já te fiz esperar muito mais em outros momentos. ” Não resistiu a uma risadinha divertida com o pensamento. Enquanto uma era extremamente pontual e responsável com seus compromissos, a outra adorava a atenção recebida por chegar depois de todos. Não importava o tempo ou a distância, havia algo na dinâmica entre as duas que nunca desaparecia, como se os anos de separação ou afastamento não pudessem apagar completamente os laços que compartilharam. “ Então, qual é o plano mirabolante que você armou desta vez? ” perguntou, ajeitando o cabelo enquanto olhava para Neslihan com um misto de desconfiança brincalhona e genuína curiosidade. “ E por favor, me diga que não envolve adoção, de novo, de alguma criaturinha que você resgatou. ”
toda aquela troca animosa entre eles gerava em si sentimentos que não se orgulhava . christopher era capaz de desmantelar a estrutura milimetricamente composta da sua civilidade , e não da forma como camilo o fazia com provocações incessantes . a reposta que o loiro obtinha era visceral , instintiva , acre em sua raiz e degenerada em extensão . não era natural a forma com que um simples olhar alheio era capaz de gerar tamanho asco , não para si . o motivo , no entanto , era nítido em suas convicções , e acreditava que nem mesmo para salvar a própria alma seria capaz de enxergá-lo por outro viés que não a ótica turva e enrijecida . os ombros curvavam-se novamente a cada palavra que escapava no tom plácido , como uma cobra enrolando contra o próprio centro ao preparar-se para um bote . os demônios que habitavam uma parte crua e descontrolada de si , acordando do estupor que ela insistia em colocá-los . afundando as unhas na bancada pegajosa até que o eco de dor fosse suficiente para perfurar a nuvem viperina que ofuscava seu senso , replicou o riso vazio , cansada .
❝ eu afirmei que você é uma fraude , não uma fraude incompetente . ❞ o gesto de indiferença com o corpo era despreocupado , não traindo inquietação alguma . ❝ você não faz ideia do que a sua vitória custou . não a mim , eu sou capaz de lidar com minhas frustrações , mas aos que perderam para um homem vil , corrupto e com influência suficiente para comprar juízes e jures e sair impune de um crime que nós dois sabemos que ele cometeu . ❞ a insinuação de que o caso havia sido ganho às custas de subornos era intencional , não que ela realmente acreditasse nas palavras . atribuía a derrota , em parte , ao impecável trabalho paterno de encobrir todo , e qualquer , vestígio de evidências concretas o bastante para montar um caso sólido , e , em parte , às próprias emoções em relação ao homem , nocivas e cegantes . suficientes para fazê-la pensar que algo capaz de abalá-lo fosse tão simples . ❝ mas não espero algo diferente vindo de você . ❞ não se importava com o motivo para o outro seguir às cegas o comando do próprio pai , sabia que era impossível ele defender indivíduos como kadir şahverdi e permanecer inocente .
com a citação pedante de filósofos , a morena apenas meneou os fios de maneira cética , a expressão fleumática cedendo sob a pressão de um sorriso sardônico . ❝ tudo isso e , ainda assim , não é capaz de responder a um simples questionamento que poderia ter sido ilustrado por uma criança . ❞ circulando os dedos pela borda no copo , agora contendo apenas uma fina fatia de laranja , era uma tentativa de refrear as reações físicas ante o humor que o enchia ao analisar suas palavras . ele chegava a conclusões fundadas na forma que ele escolhia observá-la , uma análoga à sua em relação a ele , ainda que a sua tivesse sido construída com base em precedentes e não meras suposições regadas por pura arrogância masculina .
❝ cuidado , christopher , parece que você está projetando o que acha de si mesmo em mim . o que , francamente , é fascinante . ❞ a fala alheia , de maneira sinistra , ecoava quase verbatim o que ela pensava sobre ele . ❝ não , não uma deusa , embora o pensamento seja lisonjeiro . apenas alguém que reconhece o que há de errado nesse mundo , e , felizmente , faz o que está ao seu alcance para remediar o possível . ❞ o sorriso era quase sacarino , embora mesclasse com a peçonha em sua língua . ❝ oh , não . eu sei que sou cheia de falhas , e entre a maior delas está ceder meu tempo e intelecto a discussões com pessoas como você . ❞ neslihan não julgava-se perfeita , pelo contrário . encontrava mais erros em si do que em qualquer outro ser humano , e flagelava-se por tal , não que ele jamais pudesse cogitar a possibilidade . já sua natureza controladora advinha da aceitação de sua forma maculada e imperfeita , era a única maneira que encontrara de conseguir garantir que o passado não se repetisse e se entregasse aos caprichos de uma psique fragilizada . o riso que escapava por entre os dentes era quase inaudível ao fixar as íris às dele . ❝ realmente quer falar sobre a minha moral ser duvidosa , quando você está envolvido até a cabeça com corporações que sugam a alma da humanidade ? ❞
era impressionante a maneira como ele provava a cada segundo as contradições que o regiam . como ele era capaz de conviver com tamanha hipocrisia o conduzindo , era algo que ela analisaria com admiração , não fosse preocupante . ❝ como você parece ter a certeza de que me escondo de tudo e todos é surpreendente . ❞ apoiando o queixo contra a palma destra que se sustentava no balcão , solevou uma das sobrancelhas em escárnio ao encará-lo completamente . ❝ você verdadeiramente acha que sabe quem eu sou , não acha ? ❞ cruzando uma perna sobre a outra , continuou . ❝ quem realmente me conhece , também , pasme , sabe de cada detalhe sobre mim . assim como qualquer outra pessoa . ou a sua prepotência é tão grande ao ponto de achar que somente você possui verdadeiros amigos ? ❞ reproduziu o tom que inferia a ausência dele em seu círculo de proximidade , e ela agradecia aos cosmos por tamanha clemência .
verdadeiramente exaurida , as palavras trocadas , aliadas à negatividade que a todo custo tentava conter em cada uma de suas sentenças e gestos calculados , a esgotavam . e apesar da calmaria que se apossava de seus músculos , as veias zuniam em sua têmpora com o esforço de manter-se sob o véu da polidez social . se pudesse , as mãos já estariam envoltas no pescoço alheio , sentindo o pulso vigoroso se esvair com os segundos . o pensamento era elucidante da real deterioração do seu estado mental e ao percebê-lo depositando as notas no balcão , puxou a própria carteira da bolsa , descruzando as pernas . deixando os euros flutuarem brevemente até encontrarem a madeira , os ofereceu ao bartender com um sorriso suave e uma piscadela de agradecimento . levantando-se , recolheu as peças descartadas que compunham seu guarda roupa , antes de ousar um último visual do rizzo . ❝ não é troco , chama-se gorjeta , e é uma prática comum na sociedade . ❞ deu as costas antes que ele o pudesse fazer primeiro . tomando profundas respirações , exclamou sem olhá-lo antes de desaparecer do campo de visão masculino. ❝ saúde ! que você continue exatamente como é , será garantia suficiente de que morrerá sozinho . ❞
@khdpontos
A palavra fraude repetia em sua mente como um eco distante, fazendo com que um riso sem qualquer traço de humor escapasse por seus lábios. Mal sabia ela que outra carreira era tudo o que ele quis desde quando aprendeu a ler. No entanto, ela não estava errada sobre sua capacidade de ler as pessoas, Christopher era realmente bom em reconhecer comportamentos e em perceber detalhes que na grande maioria das vezes escapavam dos olhos da grande maioria. Sua capacidade de se colocar tanto na pele dos clientes que recebia como na pele daqueles que enfrentaria em um tribunal era justamente o que o tornava um advogado acima da média e também o que fazia ele ter ainda mais raiva da profissão que exercia. Ser um advogado exigia que ele fosse imparcial e ser imparcial, na grande maioria das vezes, exigia ir contra tudo o que ele acreditava. Neslihan não sabia, mas vencê-la no tribunal não havia trazido nenhum bem-estar pessoal para Christopher que sabia muito bem o tipo de pessoa que o pai dela era. No entanto, seu fracasso implicava em uma perturbação da tênue linha de paz entre ele e o pai, o que por sua vez poderia resultar em estresses para a mãe, e isso era algo que ele não arriscaria, mesmo que significasse ter de lidar com a miséria causada pela vitória depois. Talvez se ela o tivesse chamado de hipócrita, ele ficaria mais tentado a concordar com ela.
"Bom, se você acredita que eu sou uma fraude, talvez devesse olhar para si mesma, já que sabemos quem acabou levando a melhor no último embate." A máscara de tranquilidade mantinha-se intacta, enquanto ele a ouvia recitar vários de seus autores favoritos. "Miserável, imperfeito, assim é o mundo e o mais perfeito de seus fenômenos, o homem." Citou Schopenhauer, um dos autores que costumava ler em momentos não muito bons, mas que o pessimismo do mesmo em relação a humanidade muitas vezes ia de encontro ao próprio estado de espírito. "O ser humano é como uma folha em branco." Agora foi a vez de Locke, que o fez sorrir brevemente. "Todos os seres humanos são falhos, incompletos, mas ainda sim dotados de capacidade cognitiva para trilhar o próprio caminho, escrever sua própria história e com um senso do que é certo e errado que, por n motivos, pode não ser igual para todos. Por isso que podem haver conhecimentos similares, mas que foram adquiridos e interpretados de diferentes formas." Disse em um tom neutro, como se toda a irritação do momento houvesse desaparecido. " Você assume que eu nunca senti o amor porquê você não o sentiu, o que de certa forma não me surpreende, já que é mais do que nítido o tipo de sentimentos que possuem lugar na sua vida." Pela primeira vez, os olhos encontraram os dela, notando ali o mesmo tipo de incômodo que sentia. Quase sorriu de satisfação. "Enfim, tudo isso pra te dizer que eu não saber dar uma descrição exata não é advento da ausência do amor na minha vida, e sim porque existem tantas formas e maneiras de falar sobre ele, que se torna impossível colocar tudo em uma única resposta." No fundo ele sabia que sua resposta havia sido um tanto quanto vaga, mas acreditava o suficiente no que havia dito para soar completamente convincente.
A risada que seguiu após a fala dela, dessa vez, foi mais alta e carregada de um divertimento genuíno. "Fala sério, você consegue se ouvir?" Perguntou, sua expressão claramente incrédula. "Pra alguém que se diz tão cheia de virtudes e boas intenções, bastou um instante para se provar a pessoa hipócrita e arrogante que você realmente é." Tornou a dar risada. "Moralmente inferiores a mim. " Christopher repetiu a fala dela entre risos. "E quem diabos você é pra se julgar superior a alguém? Uma deusa? Uma inteligência artificial? Você é tão cheia de falhas como qualquer pessoa, só que se enfia em um mundo onde finge não existem porque no fim das contas você é tão controladora que só de pensar em perder um pouco do controle sobre essa máscara de perfeição que veste com tanto orgulho já é mais do que suficiente para te deixar desesperada." Ele balançou a cabeça para os lados levemente. "Sua moral é tão duvidosa quanto a de qualquer outro ser humano, só difere o fato de que você não é capaz de aceitar isso."
Um riso soprado saiu por seus lábios e a mão tornou a circular o copo que mais uma vez foi de encontro aos lábios e só voltou para a mesa após ele sorver todo seu conteúdo. Achava cômico que ela tentasse atingi-lo o chamando de monstro, afinal, ele mesmo pensava coisas bem piores sobre si mesmo. Christopher gostava de se definir como uma pessoa consiente, que sabia suas qualidades e defeitos e lutava constantemente contras as partes ruins afim de atingir um amadurecimento pessoal. No entanto, as vezes era difícil se ater ao processo de melhora, especialmente quando já não sentia nem um respingo de paciência em si. "Diferentemente de você, eu não escondo quem eu sou de verdade, ao menos, as pessoas que realmente - a ênfase na palavra deixava claro que ela não participava desse grupo de pessoas - me conhecem, sabem tudo ao meu respeito." Ergueu levemente os ombros, como se a fala dela não o tivesse afetado em nada, mas na verdade sentia como se seu sangue estivesse borbulhando.
"E que ela te traga um pingo de humildade, pra ver se talvez um pouco dessa amargura desapareça." Respondeu de forma sarcástica enquanto negava que o atendendente colocasse mais uma dose. Sem perguntar o quanto havia gastado, colocou a mão do bolso de puxou algumas notas que carregava consigo. O valor posto sobre a mesa provavelmente cobria a conta dele, dela e de mais umas três pessoas sobre a bancada. "Pode ficar com o troco. Mais do que merecido por ter que suportar um certo tipo de clientela." Claro que não se referia apenas a Neslihan, mas não se alongaria. Em seguida, se preparava para deixar o local antes que a conversa entre os dois desse seguimento.
partner in justice : @aaronblackwell !
location : casa comune !
a cada novo evento anunciado como a oportunidade definitiva para encontrar sua alma gêmea , a paciência de neslihan se desgastava sob o peso de tentativas desesperadas de acelerar a resolução de algo cuja existência sequer possuía comprovação racional . embora tivesse prometido a si mesma que enfrentaria cada sugestão e intervenção com a elegância herdada de münevven , sentia-se como um animal acuado , pronto para reagir à menor ameaça . já havia recusado o convite dos proprietários da casa comune , mas , como sempre , a insistência dos habitantes de khadel se mostrava uma força quase sobrenatural . agora , com o cartão de confirmação em mãos — um gesto meramente protocolar , visto que a presença deles já não necessitava de qualquer formalidade — , ela lançou um olhar suplicante para aaron . a expressão masculina refletindo a sua própria , como se ambos estivessem no corredor da morte, aguardando suas sentenças .
dançar era algo que apreciava . libertar-se das tensões acumuladas sempre lhe fazia bem . mas não daquela maneira , naquele estilo . um suspiro escapou de seus lábios , carregado de arrependimento , enquanto lia mais uma vez a indicação do ritmo descrito na entrada do estúdio . salsa . ❝ quanto vou precisar me desculpar por isso ? ❞ o amigo era a única pessoa que lhe ocorrera quando , pressionada , teve que confirmar a participação na sessão . ainda recordava o entusiasmo do outro lado da linha diante da mera possibilidade deles serem destinados . uma amizade de tantos anos… tenho certeza de que vocês foram feitos um para o outro . a ideia arrancava um sorriso discreto da mulher . se houvesse uma mínima chance de um final feliz , aaron seria , sem dúvida , sua melhor aposta . o convívio entre eles era tão natural que não lhe parecia um fardo imaginar-se ao lado dele pelo resto da vida . já estavam na vida um do outro há mais de duas décadas e , com um pouco de sorte , não viveria tempo suficiente para triplicar essa marca . ele era segurança , previsibilidade , compreensão e aceitação .
❝ aqui vai uma ideia . ❞ ponderando , inclinou-se ligeiramente para ele . ❝ se assustarmos nossos instrutores o bastante , será que encerram a aula mais cedo ? ❞ a sugestão era tentadora , embora duvidasse que aqueles que tanto insistiram em sua presença desistiriam tão facilmente . ❝ preparado ? ❞ indagando , aproximou-se para enlaçar seu braço ao dele . passou uma das palmas pelo tecido do vestido , como se o gesto fosse suficiente para prepará-la para o que , naquele instante , parecia a verdadeira dança do apocalipse .
@khdpontos
o vínculo entre neslihan e aaron poderia ser comparado ao eterno jogo de ação e reação entre o sol e a lua. tão distintos em essência , compartilhando o céu apenas nos breves instantes de aurora e crepúsculo , coexistindo em uma dança que , embora incompreensível para olhos alheios , é indispensável. mesmo ela , se questionada , teria dificuldade em definir a complexidade da relação ; apenas sabia que funcionava – e há muito. a presença ranzinza era , paradoxalmente , um bálsamo de familiaridade , uma constante tão intrínseca que a falta de energia contagiante dele , em contraste ao frenesi natural que percorria suas veias , mal se registrava. ❝ eu até poderia sugerir que você tentasse adivinhar , mas honestamente , não creio que seu cérebro esteja em plena capacidade no momento. ❞ as palavras , proferidas com humor, eram acompanhadas de um piscar divertido, enquanto os olhos castanhos brilhavam. ❝ então… dois pacientes da ala psiquiátrica de siena – ou de volterra , quem sabe ? – decidiram acordar a cidade proclamando aos quatro ventos que… veja bem… estão apaixonados. e que a “maldição” foi quebrada ! ❞ o gesto das aspas enfatizadas pelos dedos foi pontuado por um tom de escárnio que transbordava descrença. ❝ consegue acreditar nisso ? francamente , a humanidade nunca deixa de me impressionar com o talento inigualável para a estupidez. ❞ enquanto tamborilava as unhas pintadas de vermelho cereja sobre o menu , saboreou outro gole do líquido quente à sua frente. ❝ será que eu te choquei a ponto de nem pedir o de sempre ? ❞ permitiu que uma breve sombra de preocupação transparecesse antes de um sorriso retornar aos seu lábios.
"Duas, três...não sei", murmurou baixinho, meio sem ânimo, enquanto passava o olhar pelo cardápio já decorado. Ele coçou a testa, bem acima da sobrancelha esquerda, diante da pergunta da amiga sobre o jornal. "Hum...não. O que foi dessa vez?". De um modo geral, ele tentava se manter alheio às fofocas da cidade, mas algumas eram tão grandes, que não tinha para onde fugir. E, diante do tom da amiga, aquela parecia uma das que realmente não poderia ignorar. Por isso, deixou o cardápio de lado e se inclinou na direção dela, apoiando os braços na mesa. "Okay, Nes, shoot! I'm ready".
os dias que antecederam o fatídico encontro com camilo desenrolaram-se como um prelúdio de estranha quietude , e neslihan deveria ter decifrado a calmaria da como a bonança que precede uma tempestade . a dança travada entre ela e o homem era uma composição de espinhos e pétalas , um ritmo de contradições , que ao mesmo tempo que a avivava , se entrelaçava com receio e a noção de que tudo nada mais era que uma miragem . sob o disfarce da aposta e a justificava da suposta maldição que os unia , embora soubesse que não passava de um jogo de caprichos e vontades , havia pouco o que pudesse ser contestado , não com o ricci envolvido na trama e sua palavra em linha .
relendo pela oitava vez a mensagem que detalhava os planos para a noite , soltou um suspiro , o gesto carregado de resignação e com um toque apreensivo . não pelo que certamente a esperava , o conhecia e as expectativas não eram grandiosas . não , a gökçe , quando devidamente preparada , habituara a pressupor o mínimo de camilo para evitar ter decepção como o único sentimento correndo em suas veias além da ira latente . o que levava ao real motivo da inquietude . o algo a mais que parecia residir nos olhos castanhos do homem — o brilho sagaz , a gentileza involuntária revelada nos pequenos gestos de acolher e proteger animais — e que ele insistia em ocultar , fazendo-a questionar a verdadeira profundidade do homem . seria ele capaz de enxergar além , perceber o tormento que ainda regia o interior feminino , ter um olhar mais crítico do que demonstrava com o egocentrismo típico de um herdeiro acostumado a excessos .
vermelho , neslihan não trajava apenas uma cor , mas uma armadura . a exuberância da tonalidade distrairia breves atenções , desviando-os do corpo . longe dos hematomas amarelados e púrpuras que salpicavam o lado direito das costelas , cuidadosamente ocultos pelo corte estratégico que evidenciava a pele oposta . a seda luxuosa deslisava suavemente sobre a pele , sem abrasar os pequenos cortes que trilhavam a extensão entre quadril e coxa , também velados pela fenda que se abria expondo a perna oposta . um artifício de ilusões , uma arte que dominava desde o momento em que nascera uma şahverdi . os dígitos da destra , adornados pelos anéis de herança materna , descendiam pelo tecido enquanto as íris permaneciam fixas às janelas da villa , em espera da interrupção do interfone conectando os portões de ferro ao interior terracota .
com a canhota entremeava os dedos no pelo aveludado de mark , que a vinha perseguindo como uma sombra protetora desde a sua queda . afagando o animal , desvinculou-se do peso sobre o seu colo com o surgir do par de faróis à distância . apressou-se para abrir a barreira , os saltos em camurça a carregando porta afora , aguardando-o contornar a entrada . o sorriso oferecido era genuíno ao rosto repleto de linhas do tempo , os fios prateados reluzindo ao abrir-lhe a porta do veículo . ❝ grazie mille , signore . ❞ aceitando a palma calorosa como apoio , viu-se envolta pelo interior luxuoso , a conversa em tom animado a acalentando e fazendo o trajeto desaparecer com um pestanejo .
entretida pela cadência do timbre rouco contando histórias de seus netos , neslihan acompanhou a figura levemente curvada até que ele estendesse uma mão novamente , assegurando sua saída . com os lábios ainda presos em humor , não foi até que a exclamação de camilo ecoasse , que percebeu que ali ele estava , as vestes inteiramente pretas destacando o bronzeado da pele . com o elogio soando verdadeiro em seus ouvidos , o sorriso que havia caído retornou , surpreso . deliberando sobre a exigência feita quanto a refrear seu temperamento sanguíneo , girou lentamente em seus calcanhares , o riso escapando mais natural do que antecipava . o recorte pairava logo acima das costelas , alto o suficiente para quase nada revelar na baixa iluminação noturna . ❝ você também está muito... charmoso . ❞ o reconhecimento saía em hesitação , delongando-se no adjetivo , ainda que tivesse de admitir que os óculos conferiam um toque de charme na expressão usualmente presunçosa .
atendo-se ao braço que era oferecido , permitiu-se acompanhá-lo , o calor alheio e a proximidade provocando consciência incômoda na pele . com a sugestão polida , solevou uma das sobrancelhas em diversão . ❝ oh , não . prefiro a área externa , o ar livre será meu maior aliado hoje . ❞ flexionando a palma que segurava a bolsa , a postura enrijeceu-se com as próximas palavras , a outra sobrancelha arqueando . ❝ como você se lembra que eu sou vegetariana ? ❞ embora a dieta não fosse um segredo , o fato dele recordar-se e assegurar que as necessidades dela fossem acomodadas...
um pensamento alarmante a atingiu . antes não cogitava por um minuto que camilo pudesse levar a sério a busca por sua alma gêmea , e a noção era o que a tinha feito aquiescer tão facilmente . mas... seria possível que ele realmente acreditasse no amor perdido há gerações ? e o mais aterrador , poderia ele considerar que eles fossem destinados um do outro ? a consideração a fez ter um acesso de tosse , o som quase histérico , e precisou impedi-lo de adentrar il giardino — onde inúmeros olhares já os fitavam — com as unhas flexionando sobre o tecido escuro . tomando longas respirações tingidas de um leve pânico , não permitiu que ele a questionasse ou sequer oferecesse consolo . assentindo , seguiu em direção ao maître d' aguardando , os lábios forçados formando o sobrenome masculino , antes de serem guiados até o romântico ambiente , aceso com velas e o aroma de rosas permeando .
subestimá-lo havia sido um erro , neslihan deveria ter se preparado para uma guerra . a única saída era ser tão encantadora e desprovida de qualquer semelhança com o seu eu , a ponto de assustá-lo . ❝ então , podemos começar com uma taça ? ❞ a voz era doce e o pedido de permissão formava um arrepio em sua espinha . agradecendo à carta que o cameriere depositava nas mãos de ambos — um olhar esperançoso por detrás da expressão neutra que ele adotava — , pousou as íris no ricci , com uma leve inclinação de cabeça , sorrindo . ❝ imagino que você conheça os melhores , e tenho certeza que escolherá o perfeito para harmonizar com… o que tenha planejado ! ❞ com o toque trêmulo pela ansiedade abaixou o papel linho . ❝ o que sugere , milo ? ❞ o apelido era um que ela nunca havia utilizado , mas ouvira vez ou outra ser proferido com carinho e , ali , o aderia com naturalidade .
DINNER DATE at Il Giardino
with. @neslihvns
na direção do restaurante, camilo não pensava muito sobre a maldição, almas gêmeas ou o ocorrido naquela noite misteriosa. como se recuperasse finalmente um pequeno resquício da sua vida antes daquela notícia, ricci dirigia divertindo-se com a simples ideia de que aquele encontro representava sua vitória de alguns dias antes. e ele sabia que seria deliciosamente interessante testemunhar neslihan ser agradável consigo, contrariando seu instinto feroz que geralmente não falhava em colocá-lo em seu devido lugar. como tudo que envolvia os dois, toda a situação em que se encontravam não era mais do que uma briga de egos. eles tinham palavra suficiente para honrar a aposta, até mesmo camilo teria obedecido qualquer que fosse a exigência alheia, e portanto sabia que a turca não falharia. mas verdade fosse dita, a proposta do encontro não tinha um verdadeiro envolvimento com as questões recentemente levantadas a respeito de como eles poderiam estar envolvidos na lenda da maldição de khadel. milo não achava que a gökçe era sua alma gêmea, e sinceramente, nem queria achar. um ano para descobrir quem seria seu verdadeiro amor? impossível. preferia focar em algo muito mais concreto: traduzir, eventualmente, toda a inquietude alheia diante de sua presença em uma inevitável química, levá-la para cama, e finalmente riscar o nome de seu caderninho. mais cedo, solicitou que um motorista a buscasse em sua residência, e aguardou do lado de fora do restaurante a sua chegada. ao estacionar do carro, o motorista chegou até a porta antes que camilo o pudesse fazer, e assim ricci ficou, parado no meio do caminho, observando a figura magnética que deixava o automóvel em um vestido que parecia ter sido feito para uso exclusivo de neslihan gökçe. “uau” escapou-lhe, passando a mão pelo próprio peito como se desamassasse a peça de roupa, mas na verdade buscava mandar um aviso discreto para que o corpo diminuísse um pouco a palpitação no peitoral. piscou algumas vezes antes de voltar a se concentrar, e caminhou até a jovem sem demora. “você está… estonteante.” ele já estava na vantagem ali, certo? que mal fazia um elogio sincero? não era como se neslihan não soubesse o quão atraente era. talvez ela aguardasse algum comentário engraçadinho e presunçoso, até por ter exigido que ela lhe oferecesse simpatia independente de como ele se comportasse, mas sabia que somente havia uma forma de pega-la desprevenida: ser agradável. pelo menos até sentarem à mesa. ofereceu o braço para que caminhassem juntos até a entrada do restaurante. “escolhi a mesa do lado de fora, mas eles podem mudar, se você preferir” a música no ambiente interno era boa, mas estar ao ar livre parecia mais agradável. imaginava, pelo que conhecia dela, que a morena também escolheria o mesmo. “e já confirmei também o cardápio. as opções, para nossa mesa, são todas vegetarianas. até as minhas, então não precisa se preocupar” sorte a dele que sua má fama faria a mulher pensar que tais esforços eram apenas charme temporário: imaginem se descobrissem que as vezes camilo ricci conseguia pensar em outra pessoa além dele? “vamos?”
desde a mais tenra infância , neslihan fora moldada sob a rigidez do dever , envolta em ouro , mas contida por correntes invisíveis . sua existência sempre se definira por uma dolorosa dualidade , a necessidade de sentir em contraste com a imposição do autocontrole , o embate incessante entre o querer e o dever . esse conflito , enraizado em sua mente , tornara-se a fratura primordial que assombrava a parte mais sombria de seu passado . culpava , sim , a figura paterna por parte das feridas que lhe foram infligidas , algumas delas irreparáveis . no entanto , via na fragmentação de seu próprio ser uma obra cuja autoria também lhe pertencia . daquela tragédia , restara-lhe um âmago parcialmente enrijecido — sua visão de mundo tornara-se austera , seu julgamento sobre as pessoas , inflexível , e sua postura perante a própria existência , uma fortaleza intransponível . e camilo era o oposto exato de cada uma dessas certezas . para ele , tudo parecia fluido demais , como se suas convicções mudassem com a mesma facilidade com que trocava de roupas ao amanhecer , como se suas verdades fossem tão voláteis quanto os humores de um único dia .
ela não se iludia ao pensar que compreendia todas as nuances que o compunham, mas o conhecia o suficiente — anos de observação cuidadosa e encontros forçados ao lado de vincenzo ricci e aquele sobrinho haviam lhe dado a convicção de que alguém criado sob a tutela do patriarca dos ricci não poderia desviar-se tanto assim do molde original . não importava que ela própria fora forjada sob a sombra de um homem igualmente desprezível e , ainda assim , renunciara a cada valor que lhe fora incutido . não via nele a mesma ânsia de se libertar , a mesma necessidade de transcender a redoma em que cresceram . curioso como ela era capaz de vislumbrar potencial até nas circunstâncias mais desoladoras , mas quando se tratava das pessoas ao seu redor , seu olhar se tornava opaco . talvez fosse uma falha evidente para qualquer observador externo , mas naquele momento de sua vida , preferia envolver-se no véu confortável da negação . havia algo de insistente nessa postura , um reflexo interno que , por vezes , ameaçava ceder — mas então camilo lhe recordava exatamente por que isso jamais aconteceria .
bastava um gesto , um olhar carregado daquela insolência que a irritava profundamente , um simples pronunciar do apelido em seus lábios para inflamá-la de fúria… ou , se fosse brutalmente honesta , algo mais . ❝ vou providenciar . amanhã de manhã a lista completa estará na sua caixa de entrada . ❞ e assim o faria , nem que precisasse atravessar a madrugada compilando meticulosamente cada detalhe sobre o valor de cada gole do bourgogne . ❝ entendo . nem todos os homens conseguem portar-se com a sensualidade inerente de um jardineiro . ❞ a voz adquiria um timbre aveludado . ❝ todos aqueles músculos à mostra , o suor misturando-se ao aroma da terra molhada… uma essência irresistível . ❞ pareava a provocação dele , acrescentando um piscar de olho deliberado .
a observação alheia foi recebida com um sutil estreitar das íris castanhas , enquanto a sobrancelha dele se arqueava . ela seria a última a negar o que ele insinuava , por ser a mais pura verdade . o medo corria demasiado forte em suas veias para que pudesse ceder o controle e , mais uma vez , encontrar-se à deriva — presa em uma circunstância desconhecida , sozinha , dissociada de tudo que a compunha , sem sequer lembrar o que fizera para ferir quem quer que fosse . manter o domínio sobre qualquer situação que a envolvesse era a única forma de garantir que , se houvesse dor , ela fosse restrita a si mesma . ❝ não há nada demais em querer manter o controle . pelo contrário , é uma forma de satisfação como nenhuma outra . ❞ camilo não era o primeiro , e certamente não seria o último , a insinuar que sua existência dentro de uma bolha de restrições autoimpostas a condenava à infelicidade . mas vindo dele — com aquela despreocupação boêmia , aquela facilidade irritantemente leviana — , a fala ressoava como brasa queimando em seus pulmões . ❝ apreciar os prazeres da vida é uma coisa . ser completamente inconsequente ao fazê-lo é outra . saber dosar quando , como e onde os aproveito apenas prolonga a sensação de contentamento . não abro mão do que me satisfaz , apenas não me entrego aos impulsos como se o mundo fosse se desfazer em um piscar de olhos se não o fizer . ❞
levantou a taça quase vazia , deixando que o vinho deslizasse pelo paladar , apreciando a textura aveludada que o carmesim lhe proporcionava . ignorou o impulso de revirar os olhos , assim como a tentação de comentar sobre o sorriso alheio — embora , caso se permitisse um instante de análise , talvez concordasse . as palavras dele , ainda que envoltas naquele flair característico , traziam o peso de algo que lhe apertou a respiração por um breve instante , dissipando-se logo em seguida com um menear dos fios e a litania posterior . um riso seco escapou dos lábios ainda tingidos de rubro . ❝ tenho dificuldade em acreditar porque não sei se suas ações são genuínas , camilo . ❞ não se tratava de charme , como ele sugeria . a verdade era mais crua , neslihan simplesmente não sabia como reagir a ele de outra maneira que não fosse com ferocidade . não sabia se os gestos dele eram sinceros ou se carregavam as segundas intenções que pareciam reger cada um dos seus encontros , fosse naquele momento ou em qualquer outro .
com apenas duas palavras , o ricci dissipava o pulso inquieto que as provocações dele instigavam . havia algo na sinceridade que interrompia qualquer pensamento alheio naquele instante , deixando apenas um eco silencioso que se espalhava até as pontas dos dedos — uma sensação estrangeira . com um aceno hesitante , aceitou o pesar que ele oferecia . talvez aquele fosse um dos raros momentos em que poderiam ser genuínos um com o outro , sem a necessidade de pretextos . ela sequer era nascida quando a mãe de camilo fora internada e jovem demais para recordar-se do momento em que a doença lhe roubara a vida , mas a história era de conhecimento geral , e a morena sentia a perda dele como apenas quem já houvesse experimentado dor semelhante poderia compreender . imaginava que , para uma criança , a ausência materna fosse ainda mais avassaladora do que para um adulto — como fora em seu caso . mas mesmo tendo quase duas décadas a mais ao lado da própria mãe , por vezes parecia que münevver muito antes deixara de pertencer ao mundo dos vivos . a fisgada que a lembrança causava era lancinante , embora logo se dissolvesse diante da confusão provocada pelo gesto dele ao erguer a mão em sua direção .
o riso masculino percorrendo a extensão da pele exposta era o motivo por finalmente conceder , embora as palavras ditas em divertimento recobrassem a consciência de algo que não saberia nominar . com a palma aninhada no aperto alheio , neslihan inclinou-se , os dígitos formigando antes mesmo de entrarem em contato com os fios acetinados . seguiu o movimento conforme ele guiava , podia sentir o calor que ele irradiava subir pelos braços , até que o toque feminino encontrou o pequeno relevo , uma resistência sob a superfície . assentiu ao questionamento antes de pender a cabeça , enredando os dedos pela pele alheia enquanto ele explicava . a menção de um acidente — automobilístico , como aquele que ela mesma protagonizara — provocou um breve sobressalto com semelhança inesperada .
assim que sentiu o fragmento incrustado , poderia ter retirado a mão , encerrando ali a conexão , mas não o fez . não até que ele finalizasse , até que aumentasse a distância entre eles e desfizesse a leve pressão que os mantinha ligados . só então neslihan recolheu o braço , cerrando o punho de maneira quase imperceptível antes de repousá-lo no colo , onde o linho do guardanapo descansava sobre as pernas . desanuviando a garganta , que de súbito pareceu ressequida , indagou . ❝ e não te incomoda em nada ? não é perigoso que permaneça por todo esse tempo ? ❞ as perguntas saíam com mais curiosidade do que desejava , com uma preocupação que transparecia em excesso clareando a voz . embora ela própria não apresentasse sequelas físicas do acidente de tantos anos , as invisíveis a atormentavam mais do que qualquer cicatriz que pudesse ser vista .
esboçou um sorriso diante da colocação dele , embora os ombros permanecessem retesados sob o formigamento que ainda reverberava da palma para o restante do corpo . enquanto ele ponderava sobre o que compartilhar , por um longo momento , manteve as íris fixas na expressão distante que se instalava nas feições do mais velho . percebia , então , que já fazia algum tempo que seus olhos não sentiam a necessidade de se desviar da intensidade que camilo personificava . a constatação a fez quebrar o contato visual de imediato . refugiou-se no cristal vazio sobre a mesa , nos talheres de prata quase intocados , na comida negligenciada , no tecido carmesim que deslizava sobre suas pernas conforme as descruzava e cruzava no lado oposto . na tentativa de não ser consumida — seja lá pelo que estivesse tentando enraizar-se dentro dela naquele momento — precisou piscar algumas vezes quando a voz grave rompeu o silêncio , trazendo-a de volta à realidade antes que se perdesse nos próprios devaneios .
com a simples menção da fazenda , soube que a história recontada puxaria as cordas de seu coração . era inevitável . sabia bem o que ele fazia por aquele lugar e , se camilo tivesse consciência , entenderia que essa era a única fraqueza que poderia usar contra ela . o repuxar dos lábios se expandiu de forma quase natural , mas logo tomou um arco agridoce . amor . antes que ele enunciasse a palavra , ela já a havia formado em sua mente . a história que ele tecia era uma representação genuína do que o amor poderia ser , e pela primeira vez , talvez neslihan compreendesse um módico do que aquele sentimento mítico significava . com os olhos mais úmidos do que o tempo permitia , engoliu em seco antes de menear os fios levemente . ❝ que bom que ela escolheu a pessoa certa para cruzar o caminho . ❞ a sinceridade na entonação era mais palpável do que gostaria , mas já não se esforçava tanto para controlar cada flexão de sua voz , calcular cada gesto . ❝ e… ela está bem hoje ? foi adotada ou continua por lá ? ❞ não ousaria pedir que ele a mostrasse , fosse o caso , mas tinha a amizade de esperanza há tempo suficiente para saber que a mulher a guiaria mesmo sem um nome .
e então, mais uma vez , ele insistia em se esconder sob aquela fachada . já não restavam dúvidas de que era um disfarce — não para ela . ali , a forma como o ricci a vestia como uma segunda pele era escancarada , mais espessa do que a verdadeira , uma armadura que rivalizava com a que ela própria carregava , feita de controle e distância . ❝ não , ainda não tive o imenso privilégio de presenciar cena tão deplorável quanto ver mulheres se atirando em sua direção por conta de um sorriso bonito e um animal adorável nos seus braços . ❞ mesmo com a sobrancelha arqueada em ironia , as palavras não carregavam a mesma mordida usual .
com uma mordiscada na mozzarella , permitiu que o sabor suave , amanteigado e fresco se espalhasse pelo palato . tomando o cristal entre os dedos , levou-o aos lábios , sorvendo o líquido por completo antes de ceder-se a mais uma dosagem do grand cru . permaneceu em silêncio por alguns instantes , recuperando a memória exata do momento em que uma decisão infantil selara algo que a acompanharia até a morte . ❝ bem , tinha exatos seis anos . era o dia do meu aniversário e , como sempre , um banquete era esperado . não importava que , entre os convidados , houvesse mais parceiros de negócios do meu pai do que amigos meus — liv estava lá , e era a única . ❞ concedeu brevemente , antes que a lembrança a puxasse de volta . ❝ estávamos brincando , a contragosto de muitos , porque onde já se viu uma criança querer brincar na própria festa ? e , sem querer , acabei entrando na cozinha . era um território proibido nos dias de comemoração . ❞
hesitou por um instante antes de continuar . ❝ e diante dos meus olhos , estava o cozinheiro abatendo alguns coelhos , enquanto partes de cordeiros , em diferentes estados , espalhavam-se pelas panelas e ilhas . lembro de sentir um pedaço de mim se esvaindo junto deles , e ali prometi que jamais compactuaria com aquilo . ❞ a voz , ainda que suave , conotava a mesma firmeza de quando tinha a pouca idade . ❝ palavras fortes para uma criança que dependia dos outros para se alimentar . no início foi... complicado , mas uma vez que meu pai percebeu que aquela era uma batalha perdida , tive gioconda ao meu lado . ❞ omitia a parte em que o homem a deixara dias sem comer como punição , ou quantas vezes precisou desmaiar de fome diante dos conhecidos dele até que sua vitória fosse concedida . aqueles detalhes camilo não precisava saber . tampouco que , ironicamente , a recordação estava entre as mais felizes que guardava sob o teto dos şahverdi — puramente ligada à presença da cozinheira que lhe ensinara tudo o que ainda recordava no presente .
tomando mais um gole do vinho , levou a manicure até o queixo , como se pensasse profundamente a questão seguinte . ❝ se você pudesse mudar apenas uma coisa na sua vida , o que seria ? ❞ já que a proposta inicial dele , ainda que dúbia , era se conhecerem , neslihan não se manteria na superfície rasa onde ele parecia querer conduzi-la . ainda que , até ali , nenhuma resposta dela — ou dele — tivesse sido menos do que carregada .
o problema de pessoas como neslihan era que através de suas lentes duramente arbitrárias, por vezes colocavam-se em um lugar de condescendência que as cegavam para qualquer não obviedade. camilo podia não ser o maior filantropo (ou sequer ser considerado um de qualquer modo), mas antes de qualquer coisa, o ricci não saía de seu caminho para prejudicar ninguém. não era um homem bom, mas será que era justo considerá-lo um homem mau? egocêntrico, sim. superficial, com toda certeza. mas no final das contas, não havia verdadeira maldade nele. o trabalho com os animais poderia ser um bom indicador de que ele não era fisicamente incapaz de fazer o bem, e por mais que muitos pensassem que aquilo não passava de uma fachada, neslihan o observara na fazenda vezes o suficiente para reconhecer a autenticidade de suas intenções. assim ele presumia, pelo menos. ‘se mudar a vida de uma única pessoa, já terá feito mais do que espero de você.’ o sorriso quase vacilou, a postura alheia e os dizeres descrentes o atingiram um pouco mais do que estava disposto a demonstrar. camilo podia se considerar o centro do próprio mundo e priorizar a si mesmo com frequência, mas estava absolutamente distante do exemplo de amor próprio. alguém tão indulgente em pecados do mundo, tão irresponsável e auto destrutivo não poderia ter qualquer carinho sincero por si mesmo. o olhar da turca o recordou, por alguns segundos, que aquela era simplesmente a sua sina: sempre esperariam o pior dele. sua família, seus colegas, desconhecidos, todos. palavras que ouvira por anos de seu pai reverberaram no fundo da mente, mas balançou a cabeça em uma tentativa de afastá-las. não era momento de auto piedade. chegou a pensar em valentina, em como se dedicara nos últimos dez anos para garantir que a garota tivesse as melhores oportunidades. poderia ele considerar que havia ajudado a melhorar uma vida, quando também fora responsável por destruí-la antes? “por que não faz uma lista, hani? assim não deixamos nada disso escapar.” afirmou, beirando a provocação, embora ainda fosse sincero. “eu só prefiro ter alguém para plantar as árvores. não fico bem de jardineiro”
a resposta a respeito de suas vontades fora intrigante. “são palavras demais pra dizer que você tem medo de perder o controle” devolveu, arqueando uma sobrancelha. se camilo era excessivamente indulgente, neslihan parecia o oposto. como se transformar a vida em uma sucessão de represálias fosse nobre. “existe muito valor na liberdade de admitir que a vida vale a pena pelos prazeres que proporciona. em reconhecer que você não é melhor que ninguém por abrir mão disso, só… menos feliz” deu de ombros, finalizando o conteúdo da taça. não evitou uma risada sincera com o comentário seguinte, assentindo em concordância. “o que posso dizer? meu sorriso é muito bonito” dessa vez havia leveza no tom, demonstrando que pelo menos naquele ponto ela havia vencido o embate de provocações certeiras e ininterruptas. “nah. prefiro algo mais…” gesticulou para ambos, indicando que falava sobre o encontro. “…estimulante.” a conversa entre eles era sempre interessante, afinal. “duvido que você acredite em qualquer gentileza da minha parte, neslihan” e somente poderia torcer para sua inclinação dramática lhe conferir a mesma qualidade de um ator ao tentar disfarçar o resquício de ressentimento em sua frase. “até porque, convenhamos, é o que estou fazendo a noite toda e você continua convencida do contrário” o carro, os elogios, o menu, a água, a mesa na parte externa… não havia sido menos do que gentil até então. vulgar, quem sabe, mas certamente longe da grosseria. “mas tudo bem. faz parte do seu charme” complementou, piscando um dos olhos.
esperou uma resposta evasiva, ou uma história de pouca importância. o ocorrido descrito pela gökçe apenas provava que muito embora ele soubesse interpretar pequenos sinais muito bem, estava longe de considerar que a conhecia o suficiente. pego de surpresa diante da franqueza, ouviu com atenção. a informação da morte de sua mãe não era inédita (todos sabiam naquela cidadezinha), mas não pôde evitar se abalar com o assunto. era seu calcanhar de aquiles, mesmo. “sinto muito” e de tudo o que havia falado a noite inteira, aquelas duas palavras provavelmente carregavam a maior carga de honestidade até então. nem havia notado que mal se dedicara à comida exposta a sua frente, dada tamanha atenção que a mulher detinha. ainda que o assunto da morte da figura materna fosse o que mais lhe havia chamado atenção, não deixou de perceber a coincidência escondida na menção de um acidente. assim que a pergunta foi devolvida, ele soube exatamente o que contar. estendeu a própria mão, pedindo a dela. riu quando notou a confusão e receio nos olhos alheios. “não vou morder. nem te pedir em casamento. prometo” e esperou que a jovem colocasse a mão sobre a dele. assim que o fizera, camilo a levou até a parte de trás da própria cabeça, pouco acima da nuca, entre os fios escuros. tateou o local com a mão feminina, até o indicador da mais nova encostar em uma pequena protuberância que facilmente passaria despercebida. “sentiu?” aguardou alguma confirmação. “é um fragmento bem pequeno de vidro, de um acidente de carro há uns bons anos. era mais perigoso uma cirurgia para retirar do que não fazer nada. então decidiram deixá-lo” era um lembrete dolorido do passado; do enorme erro cometido. não comentou sobre como o acidente havia ocorrido e nem o fato de não estar sozinho na ocasião. aquilo, por hora, ainda preferia manter em segredo. “para ser justo, a equipe médica que me atendeu também sabe disso. mas eu nunca contei, eles só estavam lá” brincou, soltando sua mão e finalmente provando a comida disposta à sua frente.
“uma ótima pergunta” reconheceu, reclinando-se para pensar melhor. já havia vivido tanto, feito tanta coisa… o que, de fato, o havia surpreendido? não sabia quanto tempo havia ficado em silêncio, perdido em pensamentos, mas quando se deu conta a resposta desencadeou a deixar os lábios sem qualquer auto controle. “sabe que a fazenda começou por uma ideia do meu pai? por um motivo... menos do que nobre. quer dizer, eu sempre gostei de animais, mas demorou um pouco até eu me envolver de verdade. no começo era só uma tarefa que eu tinha que executar." explicou de início, a fim de contextualizar a história que estava por vir. "então teve um dia que eu estava caminhando bem no meio das árvores, ali no final da propriedade, perto do lago. uma cachorrinha apareceu. veio até mim, direto, sem medo. estava tão magra que dava pra ver cada osso, tão suja que eu tive dificuldade de saber qual cor era o pelo. tinha um machucado na perna que não parecia recente, mas estava longe de cicatrizar. eu pensei em levá-la comigo, dar comida, cuidar, como fazíamos com todos os animais ali. mas quando tentava pegar no colo, ela não deixava. e não era que ela não me deixava encostar nela! só não me deixava tirar ela do lugar, mesmo. se eu tentava, ela colocava todo o peso pra baixo. nem sei de onde ela tirava força pra isso. então eu entendi que ela não queria me acompanhar, queria que eu a acompanhasse. quando eu finalmente deixei ela me guiar, correu até um buraco cavado atrás de um tronco de árvore caída, uns metros adiante. no buraco tinha um filhotinho pequeno e quase tão magro quanto ela. quando eu peguei ele no colo, ela desmaiou, como se finalmente a força dela tivesse acabado." lembrava-se de achar que o animal havia falecido, na ocasião.
"levei os dois correndo até o veterinário da fazenda e ele disse que, pela situação que a cadelinha estava, toda a força e energia que ela teve pra salvar o filhote foi praticamente um milagre.” pausou, como se pudesse ver na sua frente a imagem da cachorrinha sarnenta e magricela. ergueu a mão como que em rendição. “culpe a maldição, se quiser, mas foi a primeira vez que eu…" pensou em como explicar, a testa franzindo enquanto ele achava as palavras. "bom, foi a primeira vez que eu realmente vi amor” ele podia nunca ter sentido nada parecido, mas era inegável o que havia presenciado. “ foi depois desse dia que eu passei a levar a fazenda a sério” acrescentou, um último comentário antes de perceber o peso da história que lhe escapara. “além disso, já viu como as mulheres me olham quando eu estou com um filhotinho na mão? é um afrodisíaco natural” certo, aquilo deveria equilibrar um pouco a situação, possivelmente. serviu a ambos um pouco mais do vinho. “mas então, há quanto tempo é vegetariana?” parecia uma pergunta segura e suficientemente impessoal, para variar.
com a água gelada envolvendo-a até os últimos fios de cabelo e um frio implacável trilhando um caminho até o âmago , neslihan encontrava na resistência que suas unhas encontravam na pele do braço e antebraço — até que sulcos avermelhados surgissem sobre o bronze — a única válvula de escape para os pensamentos que rondavam sua mente . nem mesmo o vestígio do toque cálido da pedra , que parecia murmurar seu nome , era capaz de dissipar o gelo que se alastrava por suas veias , enraizando pavor . de soslaio , avistou a figura de christopher , e as palavras trocadas ecoaram frescas em sua memória , trazendo um arrepio que a consumiu por completo . não , aquilo não podia ser real . a situação era fruto de um devaneio , invenções de uma mente febril . uma peça cruelmente pregada por sua imaginação , que colocava em perspectiva a acalorada discussão da noite anterior . sim , era apenas isso – cenas forjadas em uma fantasia vívida demais , das quais despertaria a qualquer momento , com as têmporas pulsando em protesto contra o excesso de negronis ingeridos .
mas ela se lembrava com nitidez do dia anterior , as longas horas dedicadas a processos e rotina meticulosa , o encontro com olivia no meio do dia antes de retornar ao escritório , cansaço pulsando em suas íris ao final do expediente , exaurida pelas violações . a imagem dos olhares aterrorizados dos que buscavam sua ajuda a acompanhando em cada passo do edifício até o carro . a cidade inquietantemente silenciosa , sem casais caminhando pelas ruas adornadas pelo aroma de flores desabrochando e pelo sussurrar das folhas , como havia se tornado habitual desde que os rumores começaram a se espalhar . então , como uma fissura na frágil racionalidade que ela tentava sustentar com unhas e dentes , a pergunta de domenico , tão típica do velho amigo , estilhaçava qualquer resquício de controle que ainda tentava manter .
impossível . a palavra reverberava , enclausurada em um labirinto sem saída dentro de si , um eco desesperado em busca de uma fresta inexistente . por um breve instante , desejou abandonar a própria pele , tomar outro corpo , e contemplar-se sob o olhar de um espectador . seriam suas feições traidoras implacáveis , expondo o pânico que se entrelaçava como espinhos em seus pulmões ? ou , como esperava ardentemente , permaneceriam impecáveis , esculpidas como linhas de mármore inquebráveis ?
neslihan , para seu desgosto , novamente se via incapaz de racionalizar e atrelar sentido ao que testemunhava . com as íris impregnadas de uma perplexidade quase babélica , recusava-se a aceitar a possibilidade de que tudo o que havia conquistado — sua independência , sua vida forjada às próprias custas — pudesse se dissipar com um mero estalar de dedos . a ideia de uma maldição era risível , e ainda mais absurda era a exigência de que , para escapar de uma condenação futura , precisasse se render àquilo que mais desprezava .
amor . como poderia sequer cogitar oferecer algo dessa natureza , quando tudo o que conhecera sob a máscara do sentimento fora destruição ? como poderia atrever-se a depositar sua sobrevivência no altar de uma emoção que se tornara sinônimo de devastação ? o que o amor havia lhe oferecido , senão dor ? e como , em plena consciência , poderia ela submeter seus amigos , sua família escolhida , uma desconhecida , ou até mesmo aquele que a ferira e aquele que incinerava sua paciência com provocações constantes , à mesma desolação ? impossível . a palavra irrompeu , visceral , rasgando o tecido de sua consciência e ressoando com a força de uma convicção inabalável .
com um aperto fugaz na palma de graziella , um sorriso vazio dirigido a aaron e um aceno sutil em direção a olivia , seguiu a figura de camilo . como um espectro , vagava sob o manto da escuridão , seus dentes batendo uns contra os outros , até selar a porta do alfa romeo com uma força inesperada , fazendo os ossos de seu corpo vibrarem . pressionando o cenho contra o volante , lutava para conter um grito que se formava em sua garganta , rompendo sua respiração ofegante e irregular . com as palmas suadas e geladas , tremendo como os batimentos descompassados de seu coração , levou-as até os olhos , que dançavam em vertigem , exacerbando a náusea que se apertava em seu estômago .
o índigo do céu noturno , o prata das estrelas , o vermelho das rosas , o cinza dos ladrilhos que cobriam as calçadas , o dourado das luzes que salpicavam as ruas agora pulsando com vida . o linho encharcado da calça de alfaiataria , o metal frio dos botões da camisa , o vinil e a espiga macios do banco , a pele aquecida e... ferida de seu antebraço . ao perceber os vergões profundos que interrompiam a continuidade do caramelo de sua tez , o exercício que habitualmente a ancorava contra o pânico foi completamente esquecido .
por sorte , o carro não necessitava de chave para dar partida , ou os dedos dormentes a teriam mantido ali , à mercê de sua própria inquietação , até o amanhecer . em um trajeto que normalmente tomaria quinze minutos , conseguiu encurtá-lo para oito , quase levando os portões de ferro da villa gökçe consigo na ânsia frenética de se libertar da agonia que a consumia .
contornando a imponente estrutura de terracota , seus ouvidos captavam mark , chaz e virginia por trás dos vidros . em um movimento automático , abriu as portas duplas , permitindo que a envolvessem em uma euforia coletiva . desde o momento em que saíra da clareira , era a primeira respiração completa que tomava , mas logo o ritmo irregular de seus pulmões retornou , uma torrente de pensamentos a invadindo com uma força corrosiva . como um tornado irrompendo no estábulo que abrigava seus cavalos , os olhos se fixaram no preto azulado de gül . o hanoveriano , seu companheiro fiel há mais de uma década e meia , observava-a com a postura elegante e composta que lhe era característica , uma constante em meio às tempestades que a cercavam .
a vista era turva pelos fios que se atinham à pele ainda levemente úmida , como resultado da corrida frenética até ali . arrancando a camisa social , a calça sob medida e os saltos arruinados , movia-se com frenesi , aproximando-se do animal apenas com a fina camisole e os micro shorts de renda que lhe eram habituais . a comunicação com o cavalo era puramente instintiva , ambos entendendo-se sem palavras , por meio do corpo e olhares . a baia se abria com um gesto sútil , e sem a sela adornada com suas iniciais ou as rédeas restritivas , num ímpeto , estava sobre as costas de gül , guiando-o com o apertar das panturrilhas .
o vento frio açoitando seus membros expostos , e o calor e a respiração do animal movendo-se em uníssono com os seus , neslihan aguardava , em vão , o momento em que se sentiria livre . mas nem mesmo ao se abraçar ao pescoço de gül , deixando-o correr até o limite de sua capacidade , o mundo nada além de um borrão , as palavras daquela maldita cripta , com sua carga aterradora , deixavam de ressoar incessantes em seus ouvidos . maldição . uma ideia tão irracional que sua mente cética não conseguia deixar de se distanciar , em escárnio , da possibilidade . mas como explicar o que ouvira e sentira ? como poderia duvidar do que todos haviam vivenciado ? reencarnação . era a única concepção que ela , de alguma forma , assimilava e acreditava , mas de alguém que ali vivera há um século ? como se presa no pequeno mundo de khadel , aguardando que um ciclo cármico finalmente se completasse ?
almas gêmeas . jamais poderia condenar alguém a passar o resto de seus dias em companhia de sua presença amarga e torturada . jamais . amor . neslihan não possuía isso para dar . amor . não sabia sequer o que era . amor . grotesco . insano . amor. feridas de submissão . amor . ❝ fermare¹ ! ❞ vociferou para as vozes que a atormentavam . e gül , com infinita inteligência , atendeu ao comando , parando abruptamente , enquanto o corpo da mulher seguiu sua trajetória . arremessada contra o chão , a dor lancinante na coluna roubou-lhe o ar , o suficiente para resetar o ritmo habitual . a tontura , que antes se originava do pânico , agora girava o céu , enquanto ela permanecia em sua eterna insignificância perante a vastidão do universo .
algo úmido tocou suas bochechas , e por breves segundos , uma ilusão se formou , de uma tempestade iminente , ainda que fosse especialmente improvável no inverno seco do oeste italiano . o que resvalava a delicada pele , em meio à visão atordoada , eram lágrimas . lágrimas que , sequer no funeral de sua mãe , fora capaz de derramar , mas que agora a inundavam por completo . naquele momento , odiou-se um pouco mais . com cada fibra de seu corpo imersa em agonia , odiou-se por se permitir reação como aquela diante de um dilema como o que a confrontava , enquanto tivesse sido incapaz de demonstrar sequer uma fração daquela vulnerabilidade em momentos de dor muito mais profunda . odiou-se por trair a promessa feita doze anos antes , a última vez que deixou que kadir şahverdi a destruísse . a promessa feita com as palmas envoltas nas de münevven , as tristes , mas resilientes íris maternas , agora distantes , imortalizadas em suas lembranças .
❝ você nunca me ensinou o que é amor e como amar , anne²... por quê ? ❞ dirigia o questionamento angustiante à figura que surgia , composta de memórias e dos vultos das estrelas . ❝ porque ele não te permitiu , ou porque nunca me amou ? ❞ a voz se partia entre o choro e o esforço , falhando sem conseguir submeter o pensamento nocivo . ❝ é isso , não é ? mas por quê ? porque eu era a lembrança do que ele fez com você ? da sua infelicidade ? da sua prisão ? ❞ a única resposta eram os latidos de chaz e virginia , finalmente alcançando-a , os greyhounds felizes pelo exercício físico . erguendo-se e debruçando sob as palmas , observou-os enquanto a sensação retornava às suas extremidades , a temperatura quase gélida fazendo cada pequeno corte latejar em uníssono com os músculos exaustos .
❝ não importa . nunca me permitirei ser amada , nem amar . só estaria condenando mais uma pessoa a um fim miserável . como fiz com você . ❞ a última frase saía como um sussurro , com a força de um golpe , ferindo-a mais do que o deslize com gül .
afugentando as gotas salobras que ainda escorriam por detrás das pálpebras com mais violência do que o necessário , solevou-se sob as pernas trêmulas , ainda inseguras ante o próprio peso . tentou recompor-se com profundas respirações , as costelas protestando diante da expansão exagerada de seu peito . o olhar percorreu o pasto , encontrando o cavalo a poucos passos , fitando-a com rigidez , as narinas dilatadas em agitação . ❝ ei , ragazzone , vem cá . não foi sua culpa . ❞ com os dedos entrelaçados na crina áspera , mas perfeitamente escovada por suas próprias mãos , apoiou-se contra o corpo imponente e esguio do animal . o relincho suave a alcançou como uma forma de negação , e com um sorriso dolorido , uniu sua testa à dele . ❝ jamais , gül . jamais . ❞ o suspiro era tão pesado quanto o fardo que carregava nos ombros .
comandando o animal a abaixar o suficiente para que pudesse montar sem impulso , afagou-o suavemente , permanecendo agarrada aos fios meia-noite que formavam uma cortina flutuante à medida que ele trotava em cautela . com os únicos seres que poderiam acompanhá-la em seu caminho ainda a seguir , neslihan permitiu que as orbes vagueassem até perderem o foco , prometendo a si mesma um futuro tão vazio quanto o presente , comprometida a ajudar os que ainda ansiavam por um "felizes para sempre" , somente não o seu .
@khdpontos
✉️ : se você diz... mas meus olhos sabem exatamente o que viram ✉️ : bom , podia fazer como eu faço e sair dessa cidade vez ou outra ✉️ : iria te fazer um bem absurdo , garanto ✉️ : uhm , talvez porque você estava em um encontro e parecia estar aproveitando ? ✉️ : e eu também estava meio que ocupada tentando lidar com camilo ✉️ : roupas sociais ? absolutamente não . mas se não foi você que escolheu... ✉️ : e não fui eu que te ajudei... ✉️ : quem foi ? ✉️ : como assim que tipo de aposta ? apostas são apostas , ele tinha direito a escolher o que quisesse ✉️ : e felizmente escolheu apenas um jantar ✉️ : aplaudi-lo por qual motivo exatamente ? ✉️ : francamente , eu esperava mais da sua confiança em mim , aaron ✉️ : mas claro que você ficaria impressionado com ele , homens sempre apoiam homens afinal , não é mesmo ?
📲 [aaron]: primeiro de tudo, sem exagero. eu não estava sorrindo abertamente.
📲 [aaron]: eu só não posso fazer nada se quase nunca tem gente nova nessa cidade.
📲 [aaron]: até pq, não sei se você se lembra, mas eu trabalho em um bar. é minha obrigação saber as coisas.
📲 [aaron]: segundo, se você me viu, por que diabos não falou nada?
📲 [aaron]: e "incrível em roupas sociais"? agora eu tô ofendido. você não acha que eu consigo escolher uma boa roupa sozinho?
📲 [aaron]: nes, nes, nes...
📲 [aaron]: eu percebi aqui o q você está fazendo. não tente mudar de assunto. Ricci ganhou uma aposta? que tipo de aposta? e por que você aceitou isso?
📲 [aaron]: sério, nes. não acredito que você caiu em uma do Milo...infelizmente, vou ter que aplaudir ele por isso
* aqui se encontram conexões estabelecidas para a militante e os demais habitantes de khadel !
a estrela de cinema - tbd !
a filha do pastor - um misto de frustração e compaixão define o modo como neslihan enxerga lina. projetando feridas antigas na mais nova , colocou como missão abrir os olhos da mesma para o que pode estar ocorrendo sem que tenha conhecimento. é uma troca um tanto tensa , principalmente após presenciar a forma como os capel-d'angelo a pressionam mentalmente !
a garota problema - um soluço do destino fez com que neslihan e vivianne se encontrassem em milão antes mesmo que qualquer menção do envolvimento da loira com a suposta quebra da maldição. os dois polos do caos se conheceram em uma manifestação , e com ajuda mútua conseguiram safar-se de uma viagem às celas , a presença de uma pela simples necessidade da insanidade e da outra pelos seus princípios. a presença repentina de vi na idílica cidade veio seguida de surpresa , após , breve satisfação , seguida de completo arrependimento ao trabalharem juntas. ainda que compartilhem pontos , a incapacidade de comprometimento da nova moradora de khadel é combustível para os pequenos desentendimentos e frustrações tbd !
a menina malvada - um laço que transcende o simples conceito de amizade , neslihan tem a certeza que ela e geaziella compartilharam a cumplicidade em outras encarnações. respeito e companheirismo mútuos que datam da infância em comum , ainda que salpicados por momentos de diferenças , inquebráveis pelo tempo e provações. foi na propriedade dos martinez-giordano que ficou , às custas do relacionamento da amiga com o próprio pai , quando vergonha e falta de esperança a assolaram ao ser deserdada. com a maioridade tentaram seguir uma vida longe das pressões de khadel , um fracasso , com ambas retornando à cidade em um ponto ou outro. confidentes e inseparáveis , se apoiam e se defendem , mesmo que em não concordância , nes seria capaz de matar por grazi , e pelos que essa tem em seu coração !
a musa do verão - um muro intrincado separa a complexidade entre neslihan e olivia. uma amizade antiga , despedaçada pela influência de suas famílias e terríveis circunstâncias , que luta para manter os resquícios de calor. lembranças as regem , fazendo dos diminutos pedaços que sobraram do passado suficientes para manterem uma conexão viva. próximas , nada como a cumplicidade adolescente , podem ficar semanas sem uma ter notícias da outra , mas quando se encontram a familiaridade as inunda , conversas fluem até o momento em que os assuntos que permeiam a distância entre elas veem à tona , então a tensão as consome e a chama motriz para o sentimento perde o seu brilho !
o crossfiteiro - tbd !
o lobo solitário - um bálsamo , aaron é uma força sólida e constante na vida de neslihan. o início da conexão é um tanto anuviado , não se recorda do exato momento , mas a admiração de então pelo intelecto alheio e a capacidade em simplesmente demonstrar como é , sem a sombra de represálias pairando sobre si , ainda permanece. como sol e lua , em energias opostas , a amizade sem regras , sem cobranças , é ponto de apoio incondicional em meio ao fluente sarcasmo e ações que demonstram preocupação e carinho para além de meras palavras. o mal humor masculino é equilibrado pela energia incessante feminina , que encontram um no outro aceitação e hábitos que já se tornaram rituais !
o playboy - um paradoxo rege as interações de neslihan e camilo. o mais velho representa , e age , o oposto de quase tudo o que a mulher defende , com a exceção do amor por animais. o pequeno detalhe é suficiente para que ela reserve as demais características em seu subconsciente e permita-se humorizá-lo vez ou outra. ainda que ele tenha o físico quase perfeito , a psique do ricci a mantém firmemente em sua convicção de que ele não vale um segundo a mais do que o necessário de seu tempo , mesmo que as provocações e tentativas de sedução tragam alívio cômico em sua vida e , por vezes , o considere digno de redenção !
o último romântico - um verdadeiro pandemônio resume a forma como neslihan e christopher interagem. duas faces da mesma moeda , são opostos complementares , que projetam um no outro os piores traços que carregam e compartilham. arrogantes , orgulhosos , intensos e teimosos , tinham familiaridade e proximidade na adolescência , ao ponto de reconhecer , e admirar , a capacidade artística alheia , mas tudo mudou com o retorno de ambos à khadel. até então a cidade não era pequena demais para conter o ego de um rizzo e uma antiga şahverdi , a não ser que colocados de lados opostos em um embate jurídico. a vitória masculina trouxe à tona fantasmas do passado feminino , que ainda a assombram , e junto a noção de alguém sem princípios , sem escrúpulos e capaz de fazer tudo o que é mandando para não ter que encarar o próprio vazio !
@khdpontos
𝒕𝒉𝒆 𝒂𝒄𝒕𝒊𝒗𝒊𝒔𝒕 ! neslihan gökçe , 29 , human rights lawyer . can you hear my heart beating like a hammer ?
66 posts